Capítulo IV
A porta abriu
ou, mais precisamente, escancarou-se, mostrando uma opulenta figura feminina
que parecia retirada de um qualquer quadro típico de um casal de italianos a
comer pasta. Enorme e rechonchuda, a dona da casa, recebeu-as com dois repenicados
beijos, estalando nas bochechas de cada uma enquanto as empurrava para dentro
de casa, onde cheirava a lar, mesmo tão longe de casa. A entrada fazia-se
diretamente para uma cozinha, onde uma mesa grande, de madeira velha, ocupava o
papel principal. Dois enormes bancos corridos, também de pau, ladeavam a mesa
como que convidando sempre mais um a entrar. A conversa decorria entre Caterina
e a mulher, que ia pondo as mãos na cabeça e abanando-a com ar indignado,
enquanto exclamava “Poveretta
”. As
faces inchadas e sardentas passavam uma imagem de aconchego quase maternal e os
braços, parcialmente descobertos, grossos, pareciam estar prontos para abraços
apertados e aconchegados. Gostou da pessoa que, à sua frente, a olhavam com
bondade e simpatia e sentiu-se bem. Quentinha por dentro e por fora. Quando
finalmente Caterina saiu e a dona da pensão a encaminhou para o seu quarto,
Maria nem sequer o viu com olhos de ver. Limitou-se a despir-se e a deitar-se
no meio dos lençóis cheirosos e esticados, coberta com um edredão fofinho e
leve, como as penas de que era feito, tal qual como se estivesse coberta por
nuvens e adormeceu, levada por sonhos de anjos de olhar esverdeado que a
apanhavam quando caía por entre as nuvens, observada por mulheres gorduchas e
sardentas que comiam pasta.
***
A Praça de São
Pedro era simplesmente avassaladora. Entrou no Vaticano pelas nove da manhã.
Queria aproveitar todos os segundos e não tinha conseguido descansar, no meio
dos inúmeros sonhos que a tinham atormentado durante toda a noite, devido aos
acontecimentos que se tinham passado na sua vida no dia anterior. Parecia-lhe
que tinha deixado Portugal há semanas e, no entanto, tinham passado apenas
algumas horas. Como a praça estava praticamente vazia, resolveu sentar-se a olhar
para a Basílica. Observou-a e quase se arrepiou com a luz que emanava. As cores
que a banhavam naquele clarear quase esverdeado de início da manhã fizeram-na
lembrar uma pintura, tamanha a beleza que a envolvia. No meio daquela
imensidão, envolta no silêncio e no misticismo do lugar onde se encontrava, foi
invadida por uma paz que nunca tinha conhecido. Ali era o local máximo do
cristianismo e o mínimo que se esperava era sentir o peso dos olhos de Deus
pousados nas costas de cada cristão como que num julgamento antecipado mas, no
entanto, a sensação que tinha era de leveza, como se Deus não fosse aquele
Severo Julgador que lhe tinham apresentado na catequese, mas uma energia clara,
brilhante e positiva que emanava amor entre a humanidade. Caterina tinha toda a
razão. O primeiro lugar a visitar em Roma era sem dúvida aquele, o que lhe
podia abrir o coração e fazê-la compreender se estava a caminhar na direcção
certa. Ali sentia-se um pouquinho mais perto de Deus.
***
Embora tivesse
decidido que visitaria primeiro a Basílica, uma força quase real, quase física,
fez com que fosse caminhando pelas ruas que rodeavam as altas muralhas do micro
estado, enquanto as imagens televisivas que tinha na cabeça se iam esvanecendo,
pouco a pouco, dado as diferenças que tinham com a realidade, até chegar à
porta do museu. Cá fora, apesar de ser ainda cedo, já os vendedores de
recordações montavam as suas improvisadas bancas, recheadas de pequenos
tesouros, acessíveis a qualquer bolso turístico. Terços perfumados com imagens
papais, imanes, pins ou postais representativos dos locais mais visitados
estavam espalhados pelas mesas, à espera de novos donos.
A própria
entrada do museu era magnífica. Os vendedores dos bilhetes, colocados ao fundo
de uma enorme sala, estavam isolados em cabines como Maria só tinha visto nas
auto-estradas. Dirigiu-se a uma delas, sem ninguém na fila e aguardou que o
funcionário colocasse um marcador de livros dentro do exemplar de bolso que lia
atentamente e lhe vendesse o bilhete.
Dentro do museu,
com o mapa do mesmo na mão, começou a vaguear, deixando-se levar por aquela
atmosfera surreal. Caminhava entre obras de arte, numa concentração imensa,
tentando absorver na sua mente pequenina, aquela enorme quantidade de
informações e imagens de uma beleza alucinante, de aspeto eterno e perfeito,
capazes de permanecer belas, indiferentes à passagem lenta mas corrosiva dos
séculos. Avançando pelos corredores, depressa chegou à famosa capela sistina,
lugar onde se realizavam os conclaves para escolher um novo papa. Assim que
entrou na capela, ficou assombrada com os desenhos e as cores. Mesmo àquela
hora matutina, estavam já muitos turistas dentro daquele diminuto espaço, tão
conhecido por todo o mundo. Toda a capela era absolutamente bela, num sentido
quase divinal mas o que mais lhe chamou a atenção foi o teto, totalmente
coberto por imagens bíblicas, perfeitamente proporcionais, de forma a parecerem
reais. De cabeça empinada e nariz no ar, observou atentamente os anjos e
querubins, sentados ou deitados nas colunas desenhadas de forma a parecerem em alto-relevo. Desenho
após desenho, colocando-se em bicos de pés para ter a sensação de estar mais
perto, quase flutuava pela nave com os olhos ansiosos por gravar aquela
sensação de perfeição que ia absorvendo. Rodeada por guardas e turistas,
facilmente se abstraiu do que se passava ao seu redor. No centro do teto, uma
imagem especial, reconhecida dos manuais de história pelos quais estudava no
secundário, representando a criação do mundo, fez com que rodasse sobre si
mesma para conseguir ver melhor os anjinhos que acompanhavam Deus nesse momento
decisivo para a humanidade, até bater, sem querer nas costas de alguém,
desequilibrando-se pela segunda vez no espaço de dois dias.
O momento
seguinte teve um impacto mil vezes maior do que todas as pinturas que um
qualquer pintor, clássico ou moderno pudesse alguma vez ter feito. Quem a
fitava, perdido de riso, do fundo dos seus olhos verdes e pestanudos era o
mesmo rapaz que a tinha ajudado no avião. Maria deve ter corado até à raiz dos
cabelos porque o rapaz pareceu ficar subitamente aflito. “Parece que precisas
de arejar!” De facto, também achou que precisava de apanhar ar porque, por um
lado, ele segurava-a num equilíbrio precário para ela não cair e por outro
lado, estava cheia de vergonha por encontrá-lo novamente naquela situação. Ele
devia achá-la uma pateta, sempre a cair. “Eu estou bem.” Repreendeu-se
instantaneamente por ter dito aquela frase. “Que ridícula… Devia ter dito
alguma coisa mais interessante.” Pensou enquanto se apoiava ao de leve no braço
livre do rapaz para se equilibrar, libertando-se definitivamente daquele
embaraço, e tocou na lã fofa da camisola rosa velho, de decote redondo, a
contrastar com o moreno da pele do jovem. Ele afastou-se lentamente, mantendo o
olhar preso em Maria, que pensava no que deveria fazer ou dizer para não
desperdiçar aquela oportunidade, tão inesperada mas tão agradável de conhecer o
rapaz mistério. “Também vieste de Portugal, não foi? Eu vi-te no avião.” Foi a
deixa que ele precisava. Também ele tinha sentido curiosidade, também ele tinha
sentido aquele fascínio por aquela miúda que andava tanto com a cabeça nas
nuvens que estava sempre a cair. “Parece que fui apanhado.” Respondeu, risonho.
“É verdade, cheguei ontem de um intercâmbio
em Portugal. Uma parceria entre
as universidades italianas e portuguesas. Já ouviste falar do programa
Erasmus?” Então era isso. Maria respondeu um pouco mais à vontade. “Sim, já
ouvi falar…Então és estudante…” Resolveram sentar-se nos bancos corridos de
plástico transparente, colocados dos lados da capela, certamente para proteger
as paredes de mãos malandras, de onde podiam observá-la por inteiro. De tão
perto que estavam, embora sem se tocarem, Maria até conseguia sentir o seu
perfume quente e algo exótico. “E estudas o quê, pode-se saber?” A resposta foi
prometedora. “Hum, se adivinhares, dou-te um doce…” Maria achou que era a
oportunidade ideal de garantir um novo encontro e esforçou-se por pôr em
prática o seu lado de detetive. “Dás-me pistas?” “Hum…” brincava, fingindo-se
pensativo, de olhos postos no céu tingido de índigo, enquanto coçava a cabeça,
como se estivesse indeciso, para depois rematar com um decidido ”Não!” Maria
resolveu entrar no jogo e fingir-se muito atenta. Fazendo uma cara séria,
semi-cerrou os olhos e começou a divagar. “Bem, chegaste ontem de um país
diferente e em vez de estar com os teus amigos, vieste ver um teto pintado há
quinhentos anos… Ou és um bocadinho avariado dos pirolitos”, não conseguiu
dominar o riso enquanto rodava o indicador, fazendo círculos de um lado da sua
própria cabeça, “ou então gostas de pintura! Então, acertei?” Fitou o rosto do
rapaz ansiosa pela sua reacção mas este manteve-se sereno. “Em primeiro lugar,
senhora detetive, não é um teto qualquer… É
o
teto que o grande Michelangelo pintou, e depois”, uma pequena pausa depois
de enfatizar com veemência o artigo
o, que
precedia o famoso teto “tenho a informá-la que acertou.” A brincadeira acabou
por dar numa vénia. “Tens jeito para isto, sim senhor. Bem, eu estudo História
de Arte. Na verdade sou um apaixonado por Arte e este pareceu-me o caminho mais
natural a seguir. Depois, logo se vê…” Encolheu os ombros como quem conclui um
assunto. “Então e o que foste fazer para Portugal? Com certeza não foste comer
pastéis de Belém?!” Novo motivo de risota. “Olha que só por isso valia a pena,
mas não. Fui para lá estudar as vossas grandes obras. Portugal tem um
património artístico imenso.” “A sério? Não percebo como é que um romano, com
esculturas ao virar de cada esquina, acha piada a um país, deixa-me pensar como
vou dizer isto… romanizado!” A conversa tendia a tornar um rumo cada vez mais
íntimo mas cada vez mais interessante. “Eu acho que tem tendência a ser assim.
Cada povo não dá valor ao que é seu, acha sempre que o que é de fora é melhor…”
Maria respondia, concordando. “Pois, a galinha da vizinha é sempre melhor.”
“Como?” Obviamente não tinha percebido. “Oh, esquece, é uma expressão
tipicamente portuguesa.” Riram-se novamente e cruzaram os olhares, por uma fracção
de segundos, para logo de seguida se fixarem ambos num qualquer ponto
aleatório. “Sabes o que mais me emocionou encontrar em Portugal? Não foram os
grandes monumentos, quadros ou esculturas.” E virando-se para ela, novamente.
“Nem mesmo os pasteis de Belém.” Riram ambos. “A peça que eu mais gostei de ver
foi uma pequena cruz de ferro, perdida no meio de um espólio riquíssimo.” Maria
franziu a sobrancelha. “Uma cruz de ferro?” Perguntava incrédula. “Exatamente,
uma pequena cruz de ferro. A primeira cruz que os índios no Brasil viram. A
cruz que foi utilizada na primeira missa rezada no Brasil. A cruz que levou
novos mundo ao mundo. Queres património maior do que esse? E essa cruz está lá,
perdida, no meio de tantos outros objetos, num dos museus de Braga, numa
pequena cidade, num pequeno país.” “Estou a ver que sabes muito sobre Portugal,
até já estás a citar Camões…” O rapaz explicava muito sério. “Estas a ver como
é a nossa cultura? Tu és portuguesa e se calhar nunca viste essa cruz ou nem
sequer leste Camões.” Ficaram em silêncio novamente. Conheciam-se há uns
minutos e estavam a partilhar a conversa mais honesta e profunda que alguma vez
tinham tido. Para Maria, a única coisa sobre a qual as suas amigas sabiam falar
era a última moda ou as coscuvilhices do costume. Já em casa, nos últimos
tempos era impossível qualquer tipo de conversa. Para ele, os amigos sempre
acharam um pouco demais passar horas a desenhar e pintar ou a estudar a vida
dos grandes artistas por iniciativa própria. Mesmo na família, não encontrava
grande abertura a este tipo de discussões. Eram gente mais prática e fazia-lhes
confusão a preocupação do filho com estas questões. Maria recomeçou a conversa.
“Sabes que por uns momentos fiquei preocupada.” Observou a cara de apreensão dele
enquanto a fixava. “Pensei que o que tinhas gostado mais tinha sido uma boa
francesinha.” Soltaram uma sonora gargalhada, esquecidos do local onde estavam,
que logo taparam com as mãos, depois dos olhares reprovadores dos que os
rodeavam, concentrados em observar os nus e anjos e ninfas dos afrescos. “Tu só
falas
em comida.” A
rapariga respondeu-lhe baixinho, sussurrando para não incomodar mais ninguém.
“Na verdade, estou cheia de fome.” “A sério? Então anda comigo que eu vou
mostrar-te uma coisa melhor que os pasteis de Belém ou a francesinha. Não te
esqueças que estou a dever-te um doce!” Levantou-se de um pulo, logo seguido
por ela. “Agora? Mas ainda não vi o resto do museu.” “Deixa lá, depois vemos o
resto.” No interior da cabeça de Maria, os pensamentos começaram a disparar a
uma velocidade alucinante enquanto o ia seguindo através do emaranhado, cada
vez mais denso de pessoas, até a uma porta localizada exatamente do lado
contrário ao que tinha entrado. Quando é que se tinham tornado um
nós? Ainda mal se conheciam e já
conversavam na famosa Capela Sistina, sob o olhar atento do Criador. Decidiu
deixar-se levar por aquele italiano de olhar doce e palavras mágicas. Fosse
como fosse, mesmo que não quisesse, já estava presa. Aquele rapaz tinha-lhe
lançado uma teia invisível que a ia cativando cada vez mais. Lembrou-se de um
pormenor. “Espera,” ele voltou-se a meio do caminho, “Como te chamas?” “
Pietro”, respondeu, novamente mostrando aquele sorriso aberto de quem está de
bem com a vida, dentes brancos e perfeitos, como de porcelana brilhante. “E
tu?” “Maria” “Maria”, repetiu, acentuando muito a primeira sílaba, “como Nossa
Senhora. “Piacere di conoscerti
,
Maria.” Deu-lhe a mão quente como que para a cumprimentar mas agarrou-a logo
que se tocaram, voltando a virar-se em direcção à porta, como se a guiasse. “Cerchiamo
di andare avanti
,
Maria.” E desceram as escadas que se seguiam à porta e que davam para a praça
de São Pedro, de mão dada, em passo rápido, rumo a uma nova vida, que nunca
mais seria igual, agora que se tinham conhecido. Seguiam rumo ao desconhecido.
Seguiam rumo ao destino…